Em busca de dar uma contribuição ao entendimento da realidade além do horizonte dos nossos olhos, a Aracaju Magazine traz o artigo "Ditadores amam confinamento", de Farida Nabourema, publicado hoje no African Arguments, uma plataforma pan-africana de notícias, investigação e opinião.
Tradução: Hugo Julião
Editor
Farida Nabourema é uma defensora dos direitos humanos togolesa
Em todo o mundo, metade da população está confinada. 3,9 bilhões de pessoas foram convidadas ou ordenadas a ficar em casa e desistiram de vários direitos e liberdades para ajudar a conter a pandemia.
Para os cidadãos, esta é uma situação preocupante. Como advertiu Eda Seyhan* no African Arguments, "uma vez que governos, polícia e serviços de segurança ganham poderes extras, eles não os abandonam sem lutar".
Mas e os que vivem sob ditaduras? Como é para populações cujos governos já exercem amplos poderes com impunidade?
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*Eda Seyhan é advogada e ativista. Trabalhou para a Anistia Internacional e agora está monitorando abusos dos poderes da polícia e da situações de emergência durante a pandemia de Coronavírus no @COVIDStateWatch.
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Resistir à injustiça e ao abuso por regimes autoritários como o de Togo já era bastante difícil antes do coronavírus. Será ainda mais difícil durante e depois.
O presidente Faure Gnassingbé está no poder no Togo desde 2005, quando substituiu seu pai, no poder desde 1967 (Foto: ONU / Pierre Albouy)
Crescer em regimes autoritários - nos quais as pessoas são forçadas a recitar os elogios do presidente e a viver com medo constante da repressão - tornou alguns de nós tragicamente resistentes a crises, toques de recolher e confinamento.
Para mim, as restrições do Covid-19 trazem de volta memórias de infância, de crescer sob o regime militar no Togo: de pais correndo para casa às 19h para evitar as patrulhas; de um dos meus primos sofrendo danos cerebrais depois de violar o toque de recolher; de ouvir histórias de soldados aterrorizando civis, roubando residências e empresas e cometendo estupro e assassinato.
Lembro que me disseram que deveríamos agradecer ao Presidente Gnassingbé Eyadéma por manter a paz e a estabilidade, mesmo quando dezenas de milhares de pessoas fugiram do país. Décadas depois, dinâmicas similares estão ocorrendo novamente no Togo.
Em 2 de abril, o Presidente Faure Gnassingbé, filho de Eyadéma, anunciou um estado de emergência e um toque de recolher para entrar em efeito imediato. O governo enviou 5.000 soldados que espancaram e agrediram civis naquela mesma noite.
Fotos de um jovem que sofreu uma lesão ocular horrível nas mãos das forças de segurança se tornaram virais na comunidade. Alguns expressaram simpatia pela vítima. Outros mostraram apoio aos soldados supostamente fazendo seu trabalho.
Logo, no entanto, os relatórios aumentaram. Surgiu um vídeo de uma idosa que foi gravemente ferida por soldados depois de violar o toque de recolher. Dias depois, um jovem chamado Gueli Kodjo Djifa morreu após ser espancado.
O ministro da Segurança disse que um ataque epilético foi a causa da morte, mas a família diz que ele foi torturado pelas forças de segurança. Desta vez, houve mais tumulto público quando as pessoas perceberam que a injustiça praticada em alguns pode ser praticada contra todos.
O Togo não é o único país a enfrentar essa brutalidade em meio à pandemia do Covid-19. De Uganda a Camarões, ao Malawi e até ao Senegal, os cidadãos estão sendo violados e abusados pelos "Cavaleiros Corona".
Na Nigéria, pelo menos 18 cidadãos foram mortos pelas forças de segurança durante o toque de recolher.
Mais de dois milhões de pessoas em Harare, capital do Zimbábue, não têm acesso doméstico a água tratada. Milhares de mulheres e de crianças em idade escolar chegam a passar oito a nove horas por dia em filas de espera pelo precioso líquido.
Como as ditaduras varrem os poderes
Alguns governos autoritários impuseram outros tipos de restrições que vão além de bloqueios e toques de recolher também. No Zimbábue, o governo recentemente criminalizou a circulação de "informações falsas", prometendo sentenças de até 20 anos de prisão para os infratores.
As implicações disso são claras e preocupantes. Como Evan Mawarire, ativista e pastor por trás do movimento #ThisFlag, disse à African Arguments:
“O governo aproveitou a situação do Covid-19 para introduzir uma lei que impede a liberdade de expressão. Essa nova lei será usada além do período pandêmico para ameaçar e convencer aqueles que falam a verdade ao poder e aqueles que falam a verdade sobre o poder”.
Aqueles de nós acostumados a viver sob regime autoritário sabem que as ditaduras funcionam criando coquetéis inteiros de coerção.
Elas não sobrevivem violando apenas um ou dois direitos. Elas violam todos eles onde podem: nas liberdades de expressão e de imprensa; nos direitos de reunião; nos pesos e contrapesos.
No Togo, o parlamento acaba de conferir poderes ainda mais amplos ao presidente Gnassingbé para governar por decreto. Agora ele pode fazer e desfazer leis à vontade e mobilizar soldados quando e onde quiser.
Não que o Togo realmente tivesse um parlamento ou judiciário independente antes disso, mas eles pelo menos davam aos cidadãos uma rota pela qual resistir a certas medidas despóticas.
Presidente do Togo, Gnassingbé
Ditadura benevolente, para alguns
Agora mesmo sem a fachada de responsabilidade, o Presidente Gnassingbé já está usando seus novos poderes para seu próprio benefício. Regimes opressivos geralmente retratam seus líderes como ditadores benevolentes, concedendo generosidade a seus súditos.
Os presidentes desviam recursos à vontade e depois compartilham algumas das riquezas com seus apoiadores mais dóceis, enquanto punem os dissidentes. Esse princípio subjacente parece ter moldado o apoio de Gnassingbé aos mais pobres durante a pandemia.
O governo disse que as pessoas que perderam sua renda devido ao Covid-19 são elegíveis para receber ajuda financeira por meio do programa Novissi. Os homens podem receber U$ 17,50 por mês; mulheres U$ 20,83 por mês.
No entanto, para se registrar, as pessoas devem enviar seu ID de eleitor. Esse requisito pune diretamente milhões de pessoas que atenderam ao chamado da oposição de boicotar o processo de recenseamento eleitoral antes das eleições de 2018 no Togo.
Para adicionar insulto à lesão - e como se a politização de sua resposta ao coronavírus não fosse explícita o suficiente - o regime também distribui desinfetantes e máscaras para as mãos, com a imagem de Gnassingbé e o logotipo do partido no poder.
Na Nigéria, as forças de segurança mataram 18 pessoas acusadas de não respeitarem as medidas de contenção definidas pelo Governo para conter a Covid-19, denunciou a Comissão Nacional dos Direitos Humanos
Confinamento sob ditaduras
Nos países governados por ditadores, as pessoas não estão apenas lidando com a propagação de um novo vírus. Eles também estão enfrentando os desafios existentes de viver sob regimes autoritários, que agora são ainda mais encorajados e fortalecidos pelas oportunidades que a pandemia ofereceu.
No Togo, os pequenos ganhos em liberdades civis que adquirimos através de décadas de luta foram apagados. Os soldados estão de volta às ruas e a sobrevivência se tornou ainda mais ligada à demonstração de concordância com Gnassingbé e seus aliados.
Resistir à injustiça e ao abuso já era difícil o suficiente antes da pandemia. Será ainda mais difícil durante e depois. Metade de nós em todo o mundo está confinada. Mas o bloqueio significa coisas muito diferentes para quem vive sob ditaduras.
Aqueles de nós que ainda temos direitos - mesmo não tendo todas as liberdades - devemos emprestar nossa voz àqueles que perderam a deles.
Farida Nabourema
Cidadã de Togo, escritora, defensora dos direitos humanos, pan-africanista
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