Desde 2017 o mundo conhece a existência de campos de reeducação nos quais o governo chinês detém mais de 1 milhão de pessoas da minoria muçulmana uigur.
Pouco se sabe sobre as condições nesses locais, onde os raros relatos os comparam a campos de concentração.
Os prisioneiros são proibidos de falar seu próprio idioma ou praticar sua fé e aprendem, à força, a cultura chinesa.
Gulbahar Haitiwaji foi detida durante mais de três anos no Xinjiang e conta sua experiência em um livro que acaba de ser lançado na França.
Por Heike Schmidt
Gulbuhar Haitiwaji entre o marido e uma de suas filhas em Paris após sua libertação (Crédito: Emmanuelle Marchadour)
Gulbahar Haitiwaji vivia na França há mais de dez anos, onde é casada com um francês.
Durante esse período, ela visitou os parentes na China várias vezes, sem nunca ter encontrado nenhum problema.
Mas, em 2016, ela foi contactada por um ex-colega de trabalho, que a convocou para assinar documentos, alegando que o procedimento era indispensável à sua aposentadoria antecipada.
Ao desembarcar no território chinês, o que deveria ser uma estadia de duas semanas durou mais de três anos.
Durante esse período, ela passou quatro meses em uma prisão, na qual ficou durante dias acorrentada, antes de ser julgada, acusada de terrorismo.
A razão alegada pelas autoridades foram as fotos de sua filha, tiradas em Paris, durante uma manifestação dos uigures da França.
Após uma audiência que durou apenas nove minutos, ela foi condenada a sete anos de detenção em um campo de reeducação, onde ficou durante três anos.
Sua liberação foi possível graças aos esforços de sua família na França e da pressão exercida por Paris.
Agora, um ano e meio após ter deixado a China, ela testemunha no livro "Rescapée du Goulag chinois" (Sobrevivente do Gulag chinês, em tradução livre), que assina junto com a jornalista Rozenn Morgat.
Gulbahar Haitiwaji acaba de lançar o livro "Rescapée du Goulag chinois" (Sobrevivente do Goulag chinês)
© Éditions Équateurs
RFI: Que imagem passa pela sua cabeça quando você pensa na cela na qual passou os primeiros quatro meses de sua detenção?
Gulbahar Haitiwaji: Em penso em todas as noites acordada, no frio, com os pés acorrentados. Eu penso na má nutrição, nos guardas que nos obrigavam a ficar no pátio externo durante horas, mesmo quando fazia 30 graus negativos.
Passávamos dias inteiros decorando o regulamento interno e cantos patrióticos. Era proibido falar nossa língua ou praticar nossa religião.
RFI: Quais eram as acusações feitas durante os interrogatórios?
GH: Diziam que meu marido e minha filha eram terroristas. E, como eu sou uma cidadã chinesa, eu seria responsável.
Acredito que a China me fez viver tudo isso para se vingar de meu marido. Pois, quando visitei o país, em 2012 e 2014, queriam que ele, que tem nacionalidade francesa, desse informações sobre a comunidade uigur da França para as autoridades chinesas.
Ele se recusou. Hoje, tenho certeza que fui vítima de maus-tratos como uma forma de vingança.
RFI: Como foi o seu julgamento?
GH: Não era um processo de verdade, pois eles não eram juízes, e sim policiais fardados. No final, o “juiz” disse que eu havia sido condenada a sete anos de reeducação, mas que talvez não ficaria tanto tempo.
Disseram que tudo iria depender do meu comportamento na escola.
Também disseram que eu deveria estar feliz por não ter sido enviada de volta para a prisão e que deveria agradecer o Partido.
O Centro de Serviços de Treinamento em Educação Profissional de Artux City, ao norte de Kashgar, Xinjiang, é considerado um centro de reeducação (Greg Baker / AFP / Getty)
RFI: Após quatro meses de prisão, você foi enviada para um campo de reeducação. O que acontece nesses locais, que são apresentados por Pequim como simples escolas?
GH: Esses campos são como escolas e não ficamos acorrentados. Mas as condições de vida são quase insuportáveis. Temos que assistir a 11 horas de aula por dia, dentro de uma mesma sala.
Temos aulas de chinês, de direito, de política e de história chinesa. Temos provas todas as sextas-feiras e temos que decorar cantos patrióticos.
A alimentação é como se estivéssemos em uma prisão. Além disso, as luzes ficam acesas dia e noite e há câmeras por toda a parte.
Antes de cada refeição, tínhamos que recitar versos de agradecimento à grande China, ao Partido Comunista e a Xi Jinping.
RFI: Você escreve no livro que durante esse período entendeu o significado da expressão “lavagem cerebral”.
GH: Exatamente. Não podemos falar nosso idioma, mesmo entre uigures, não podemos respeitar nossas tradições, nem praticar nossa fé.
A China tenta nos assimilar. Eles nos impõem sua própria cultura e tradições. Então é realmente uma lavagem cerebral.
As mulheres que estão lá não fizeram nada. Algumas foram presas apenas porque usavam um véu islâmico, porque viajaram para a Turquia ou por terem parentes no exterior. Muitas delas nem sabem por que estão presas.
RFI: Você foi obrigada a tomar injeções, apresentadas pelas enfermeiras como vacinas contra a gripe. Mas esse procedimento te deixava desconfiada. Por quê?
GH: Tomei injeções duas vezes por ano e sempre nos diziam que era uma vacina contra a gripe. Mas depois notei que muitas jovens pararam de menstruar. Na época fiquei desconfiada, mas não tinha nenhuma prova.
Quando voltei para a França, fiquei sabendo das denúncias de esterilização em massa no Xinjiang. Acredito que fomos esterilizadas à força.
Membros da comunidade uigur e simpatizantes manifestam-se perto da Torre Eiffel, em Paris, em 2020 ( Mohammed Badra / EPA)
RFI: No livro você diz que “cem vezes pensou que seria fuzilada”.
GH: Em 23 de dezembro de 2018, me transferiram do campo de reeducação para uma prisão. Acorrentaram meus pés, me algemaram e colocaram um capuz na minha cabeça. Nesse momento pensei que iriam me executar.
Após 30 minutos de trajeto, quando chegamos na prisão, rasparam minha cabeça. Eu estava desesperada, pois tinha a impressão que nunca mais sairia daquele pesadelo.
RFI: Com a ajuda de sua filha Gulhumar e da diplomacia francesa, finalmente você foi libertada e voltou para a França em 2019. Por que é tão importante para você testemunhar agora ?
GH:Quando comecei esse livro, queria que todos soubessem o que acontece nesses campos. Pensei em fazê-lo de forma anônima, mas, após pensar muito, decidi testemunhar com meu próprio nome.
Tenho medo pelos meus parentes que ainda moram no Xinjiang. No entanto, nada que escrevi nesse livro é exagero. Não menti, disse apenas o que vivi.
De qualquer maneira, a verdade vai surgir uma hora ou outra. E eu espero que meu livro ajude a causa uigur.
RFI: Você tem contato com seus familiares no Xinjiang?
GH: Eu falo com eles uma vez por semana, via WeChat (a principal rede social chinesa), mas essas conversas são curtas. Ligo apenas para saber como vai minha mãe, que está doente, mas não digo muita coisa.
Acredito que a China vigia tudo o que fazemos.
Fonte: RFI