Entre 2011 e 2022, o Brasil registrou mais de 147 mil casos de suicídio, conforme revela um estudo conduzido por especialistas da Escola de Medicina de Harvard, nos Estados Unidos, e do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs) da Fiocruz Bahia.
Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil
Publicada na revista The Lancet em 15 de fevereiro, a pesquisa também investigou incidentes de automutilação, um comportamento onde indivíduos infligem lesões a si mesmos como forma de lidar com angústia psicológica, o que pode eventualmente evoluir para tentativas de suicídio.
Esta é a primeira vez que um estudo compila e organiza informações sobre suicídios e autolesões, bem como sobre internações decorrentes desses atos no Brasil.
Essa análise é crucial para o desenvolvimento de estratégias eficazes de prevenção ao suicídio, reconhecido como um desafio de saúde pública tanto nacional quanto globalmente.
De 2011 a 2022, o país observou um aumento de 3,7% nos casos de suicídio, totalizando 147.698 ocorrências, e um crescimento de 21,13% em episódios de autolesão, somando 104.458 casos.
o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), o Sistema de Informações Hospitalares (SIH) para internações por automutilação e o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) para os registros de suicídio.
Isso significa que sua ocorrência não se deve exclusivamente à existência de doenças psiquiátricas.
Fatores como predisposição genética, idade, níveis de suporte social e condições econômicas também desempenham papéis significativos na determinação desse trágico desfecho.
Flávia Jôse Alves, uma das autoras do estudo, explica que os dados vão ajudam a nortear políticas públicas.
"É importante a possibilidade de acessar essas informações e de tê-las públicas. Fazer pesquisa com esses dados ajuda a ciência a pensar estratégias de prevenção baseadas em evidência", afirma a psicóloga e pesquisadora do Cidacs/Fiocruz Bahia e da Escola de Medicina de Harvard.
Os índices mais elevados de suicídio e autolesão são encontrados entre as populações indígenas, que, no entanto, registram menor número de hospitalizações.
Esse padrão indica uma lacuna significativa no acesso a serviços de emergência e suporte em saúde mental para essas comunidades.
Em relação às faixas etárias, observa-se que as notificações de automutilação e as hospitalizações por esse motivo são mais frequentes entre os jovens (de 10 a 24 anos), enquanto as taxas de suicídio são mais altas entre os idosos e adultos.
Contudo, tem-se notado um aumento preocupante da incidência de suicídio entre os jovens, uma tendência que se alinha aos padrões observados globalmente.
O Brasil apresenta uma tendência distinta dos padrões globais em relação ao suicídio.
Enquanto a taxa de suicídio global tem diminuído, nas Américas — e particularmente no Brasil —, observa-se um aumento, conforme destacado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Quanto às diferenças de gênero, as mulheres apresentam índices mais altos de autolesão, enquanto os homens têm taxas mais elevadas de suicídio, uma tendência que se alinha às observações mundiais.
Especificamente, o suicídio é quase quatro vezes mais comum entre homens, e as autolesões são duas vezes mais frequentes entre mulheres.
O estudo sublinha a significativa influência dos fatores socioeconômicos sobre as taxas de suicídio.
Essa área de investigação aponta para a maneira pela qual as condições socioeconômicas podem predispor grupos minoritários ao suicídio.
"O aumento do suicídio e das automutilações podes sugerir maior exposição a fatores de risco, como o aumento da prevalência de transtornos mentais, com impactos diretos nos serviços de saúde, e associação com fatores socioeconômicos, como aumento da desigualdade social e da pobreza", escreveram os autores.
De acordo com o psicólogo Thiago Bloss, especializado em suicidologia (o estudo do comportamento suicida e suas causas), compreender o contexto social é crucial para decifrar os padrões atuais, especialmente a prevalência mais alta de suicídio entre as populações indígenas.
"Há um padrão de violência sobre segmentos em desvantagem social que se associam ao suicídio dessas populações". Thiago Bloss, psicólogo e pesquisador de suicidologia
"Essa violência não é apenas a física consumada, mas sobretudo a simbólica (que incide sobre o valor da pessoa) e a invisibilidade social dos grupos."
"Uma investigação social mínima dos perfis de classe, raça e gênero dos que mais se matam já desmente dados que individualizam a questão. Isso não quer dizer que as pessoas, eventualmente, não tenham transtorno mental, mas é importante entender que é um sofrimento para além do indivíduo, algo que é social, cultural, econômico", descreve Bloss, doutorando na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
A partir de 2019, tornou-se obrigatória a notificação de casos de tentativas de suicídio e de autolesão no Brasil, um movimento essencial para aprimorar o levantamento de dados, que é o alicerce inicial para desenvolver estratégias de prevenção.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) já destacou que a falta de precisão nas notificações é um desafio comum em muitos países, dificultando o combate eficaz ao problema.
"Se a alimentação dos sistemas de dados é deficiente, os indicadores resultantes podem afetar negativamente o desenvolvimento de políticas públicas na área", enfatiza o psiquiatra César Weber, doutor pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membro titular da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Flávia Jôse Alves, uma das psicólogas envolvidas no estudo, aponta que a implementação de programas de prevenção específicos em diferentes países contribuiu para a diminuição das taxas de suicídio.
No contexto brasileiro, ela salienta a importância de desenvolver estratégias direcionadas aos grupos mais suscetíveis, além de ampliar os serviços de suporte e aprimorar a comunicação sobre o tema.
"Devemos pensar em estratégias de prevenção focadas em grupos específicos e é preciso sempre falar que o suicídio é um fenômeno multideterminado."
"Não é só a prevenção clínica, é importante ter acesso a ela, mas também é necessário pensar em fatores socioeconômicos". Flávia Jôse Alves, psicóloga e uma das autoras da pesquisa
Se você está enfrentando pensamentos suicidas, é importante buscar apoio profissional, como o oferecido pelo CVV (Centro de Valorização da Vida) através do site cvv.org.br e pelos Caps (Centros de Atenção Psicossocial) em sua localidade.
O CVV está disponível 24 horas todos os dias, incluindo feriados, pelo número 188, e também oferece atendimento via e-mail, chat e presencialmente, com mais de 120 pontos de atendimento espalhados pelo Brasil.
Com informações do UOL