"Ok, cadê todo o resto?", perguntou-se Gina Abercrombie-Winstanley, chefe de Diversidade e Inclusão no Departamento de Estado do governo Biden, durante sua visita ao Brasil.
Gina viu que "a maioria das pessoas era branca, com certeza mais claras do que eu" e, "sabendo que a população é próxima do 50%-50%", emergiu a dúvida sobre o paradeiro do "resto".
A diplomata passeou por São Paulo, não por Salvador, o que explica parte do mistério. Mas, para além da geografia, sua perplexidade decorre de um erro de informação.
A população brasileira não se descreve como "50%-50%". Segundo a última Pnad, 43% declaram-se brancos, 47% pardos e 9% pretos.
A noção de uma divisão quase meio a meio entre "brancos" e "negros" decorre, exclusivamente, de uma decisão político-administrativa de unificar os autodeclarados pardos e pretos na categoria "negros".
A chefe de Diversidade e Inclusão do Departamento de Estado dos EUA, Gina Abercrombie-Winstanley / AP Images
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Trata-se da imagem que o Estado construiu da nação brasileira, não da imagem emanada da consciência dos brasileiros.
Gina viu pessoas "com certeza mais claras do que eu" em cenários onde circulava muita gente que se descreve como parda.
A diplomata americana enxergou "todo o resto", mas foi enganada por um truque destinado a enganar. Se tivessem mostrado a ela as tabelas do IBGE, o mistério seria dissipado.
Contudo, imediatamente, ruiria uma das principais fundações do edifício de políticas raciais brasileiras, que ela mesma aprova.
No Brasil, onde os pobres são a maioria, a "questão social" tradicionalmente ganhou a precedência, tanto no debate público quanto na pesquisa acadêmica.
A junção de pardos e pretos numa categoria abrangente "solucionou" o problema, permitindo a (falsa) identificação da "questão social" à "questão racial".
Se os "negros" são a maioria, então negros = pobres — e, portanto, políticas raciais podem substituir políticas sociais.
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A produção da nova maioria por uma canetada administrativa legitima quase tudo. É por essa via que o tema crucial da qualificação da educação pública converte-se em agenda marginal, enquanto faz-se "justiça social" pela implantação de cotas raciais no acesso às universidades.
É, também, por meio desse truque que se justifica a divisão, no umbral do ensino superior, de estudantes das mesmas escolas públicas, vizinhos no mesmo bairro periférico, segundo o critério da cor da pele. A raça, triunfante, transforma-se na bússola das políticas sociais.
Quase todo "o resto" – ou seja, os pardos, que são 80% dos "negros" – ocupa um lugar ambíguo na paisagem das políticas raciais.
Os pardos são, indubitavelmente, "negros" na arena das estatísticas pois, sem eles, não existiria a nova maioria.
Entretanto, tanto podem ser "negros" como "brancos" na hora da aplicação dos programas de preferências raciais. Geralmente, nas universidades da Região Sul, pardos qualificam-se para as vagas reservadas a cotistas.
Já na Bahia, onde as lentes dos tribunais raciais coincidem com o olhar de Gina, pardos transfiguram-se em "brancos" – e, assim, devem disputar vagas com seus "iguais".
Rigorosamente, os pardos não se descrevem como pardos. Nas pesquisas, os que acabam classificados como pardos (quase metade dos brasileiros!) utilizam incontáveis termos e expressões destinados a exprimir a ideia de mistura.
A noção popular de que os antepassados têm origens diversas –europeias, africanas, indígenas, asiáticas– continua majoritária.
Duas décadas de políticas raciais martelaram nas mentes o desenho de uma nação bipartida em "brancos" e "negros".
Gina acreditou nela porque é americana e ativista de políticas identitárias, mas os brasileiros não desistiram da mistura.
Pureza racial — é sobre isso, exclusivamente, que são as políticas de raça.
"Ok, cadê todo o resto?". Você os teria visto, minha cara Gina, caso seus olhos não estivessem vendados por um artefato político.
Demétrio Magnoli
Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.