Eu queria começar de um jeito melhor. Mais cool. Mais bonito. Mais literário. Mas, às vezes, não dá. Às vezes só dá pra ter ódio, mesmo. Ai, que feio, ter ódio. Pois é, horrível. Mas acontece. Pelo menos aqui, no meu CEP.
Estudantes debocham de colega de curso por ter 40 anos de idade
Três mulheres de vinte anos. Não; mulheres, não. Que ser mulher não é fato, é conquista, e independe do cromossomo. Garotas, isso. Vou chamá-las de garotas, embora haja um pano aí nessa infantilização. A propósito, será que as três garotas de Bauru já ouviram falar em Simone de Beauvoir? Hashtag fica a dica.
Você ainda não conhece a história? Vamos lá. Senta e pega uma cerveja. Ou um café. Ou um livro feminista, pra ver se me traz empatia. Semana passada, um vídeo em que três "garotas" de vinte anos debocham de uma colega de quarenta, POR TER QUARENTA, viralizou nas redes.
Pra elas, a universidade é um lugar exclusivamente pra jovens. Ai de ti, Nelson Rodrigues (fica a dica número dois).
Pra elas, a alteridade é um lugar exclusivamente inacessível. Coitadas (mentira, não tô com pena ainda, sigo com raiva, mas prometo tentar melhorar).
Foi minha amiga Kika Kalache quem me contou a melhor história a respeito disso, de olhar em volta.
Disse que no batizado de seu filho, depois de o padre perguntar o que os presentes desejavam para o futuro da criança, e ouvir muitos "saúde", "abundância" e "amor", Camilla Amado, a grande atriz que nos deixou dois anos atrás, teria mandado, bem alto, um "noção da realidade".
'É isso que eu desejo pra todas as crianças e adultos", teria dito ela.
É bem verdade que a noção da realidade tem mudado dia após dia. O toblerone ficar sem os alpes na embalagem, por exemplo, é uma coisa que eu não vou aceitar calada, não.
Já o tapete vermelho do Oscar ter virado bege eu consegui digerir melhor. Mas ignorância, bullying e discriminação me fazem arder o peito.
Minha mãe entrou na faculdade aos quarenta e dois anos, depois de quatro filhos e vinte anos de casamento. Curiosamente, quando começou a fazer análise.
Curiosamente "vezes dois", um pouco antes do meu pai se apaixonar por uma estagiária da empresa da qual era presidente.
Não que eu esteja querendo generalizar. Existem muitas mulheres de vinte anos que não são garotas. E nem todo mundo fica melhor com a idade.
Mas ver uma atriz asiática de sessenta anos ser laureada com o prêmio de melhor atriz em um lugar que sempre reafirmou os padrões norte-americanos e europeus como o Oscar me deu um certo sabor de vingança.
Isso sem falar na Lady Gaga de tênis e camiseta, 36, gata e subversiva, zero maquiagem.
Noção da realidade, vida longa e um pouco de rebeldia.
Pronto, essa é a vida que eu quis.
Maria Ribeiro é atriz, escritora e documentarista, tendo retratado a banda Los Hermamos, o cineasta Domingos Oliveira e a eleição presidencial de 2018.
Seus principais trabalhos são os filmes "Como Nossos Pais", "Entre Nós", e "Tropa de Elite" 1 e 2.
Como apresentadora, fez os programas "Saia Justa" e a serie "Tudo".
Tem 4 livros lançados, além de uma dezena de novelas e series de teve.
No teatro, acaba de fazer "Pós-F", em que encarnou Fernanda Young.