Por Miguel de Almeida*
Ao velar por sua canção “Com açúcar, com afeto”, sob o peso da guerra identitária, Chico Buarque acende a fogueira para o Touro de Bronze.
Soa como lenda, mas é comum no Brasil tão afeito a realizar copy/paste de qualquer desatino da esquerda norte-americana.
Ali pelo século VI (a.C), o artesão Perilo de Atenas presenteou o tirano Faláris, de Agrigento, com o Touro de Bronze.
Radiante e pérfido, Faláris pediu a Perilo que entrasse no interior oco de sua criação, logo colocada sobre uma fogueira. Para respirar, o escultor buscou ar pela boca do touro —e passou a “mugir” de dor enquanto era assado.
É uma das mais dramáticas máquinas de tortura inventadas pelo homem e pode ser vista ainda agora como uma metáfora para as boas intenções.
Nara Leão com Chico Buarque, em 1977: música foi escrita para a cantora // Acervo Pessoal
Nara Leão com Chico Buarque, em 1977: música foi escrita para a cantora // Acervo Pessoal
Constrange Chico Buarque, poeta a quem se deve reverência, executar em praça pública sua canção “Com açúcar, com afeto” por entender que a letra exalta um cotidiano feminino subjugado, retrato em preto e branco a ser retirado da memória.
A canção é universal justamente por não ser arte engajada, como desejam os arautos da guerra identitária.
Ao ceder, Chico corre o risco de jogar à lama parte de sua obra construída na sintaxe feminina.
Rende-se ao mal-afamado lugar de fala, recurso ideológico forjado para limitar a criatividade dos artistas, em busca de uma objetividade ou realismo alheio à arte, mas aparentado da política engajada (que sempre é oportunista).
O Touro de Bronze assará em breve Carolina? Joana Francesa?
Só que Chico não detém mais direitos (sentimentais) sobre obras suas que integram a memória cultural. Elas não mais lhe pertencem. Porque se encontram plasmadas à alma e ao comportamento das pessoas.
Imagine se Vinícius de Moraes abortar “Garota de Ipanema” por ser convencido de que a letra exalta desejo sexual masculino fora de moda? Cruz-credo.
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Outro exemplo: Chico desiste de sua visão social e cancela “Construção”, sua obra capaz de ombrear com píncaros de João Cabral de Melo Neto.
Triste seria.
A expedição de Chico Buarque nos braços da guerra identitária, ao cair dentro do Touro de Bronze, soa ingênua e desde já datada. Mais midiática do que política. Busca reescrever a história.
Se o Touro de Bronze ecoa como lenda (Chico Buarque é visto já como lenda viva?), o ano de 1936 é próximo e está documentado. Até colorizado.
O poder da política sobre o comportamento, se ganha eficiência com a invenção de Deus, cada vez mais se vale da indústria cultural (e das redes sociais) para forjar discursos.
Ocorre agora sob as bandeiras da guerra identitária e fez história em semelhantes embates décadas atrás. Lá, como agora, a intolerância lancetou mortalmente seus companheiros de viagem.
Com espírito religioso, levou-se à política (daí à arte) o pensamento de que só há um Deus e, portanto, apenas uma verdade é respeitada.
Quem julga qual é a verdadeira verdade? É quando assomam os mortos — Inquisição, gulags…
André Gide recebeu o Nobel de Literatura de 1947. Gide não somente era homossexual assumido, como também falava abertamente em favor dos direitos dos homossexuais, tendo escrito e publicado, entre 1910 e 1924, um livro destinado a combater os preconceitos homofóbicos da sociedade de seu tempo, Corydon.
Foto: Andre Gide na União Soviética (1936) // Arquivo de Literatura e Arte, Moscou / ©fineartimages/leemage
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André Gide recebeu o Nobel de Literatura de 1947. Gide não somente era homossexual assumido, como também falava abertamente em favor dos direitos dos homossexuais, tendo escrito e publicado, entre 1910 e 1924, um livro destinado a combater os preconceitos homofóbicos da sociedade de seu tempo, Corydon.
Foto: Andre Gide na União Soviética (1936) // Arquivo de Literatura e Arte, Moscou / ©fineartimages/leemage
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Boa parte da obra de André Gide começa a ser reeditada no Brasil. Sua história pessoal serve de paralelo ao mergulho contemporâneo de Chico Buarque no Touro de Bronze, de que Gide escapou.
Escritor e intelectual francês de esquerda, referência de civilidade, Gide aceitou convite para visitar a União Soviética. O ano era 1936, Stálin fazia sua guerra cultural e dominava quase a totalidade das mentes de esquerda do período.
Só que Gide não se contentou ao programa oficial (números exibidos em PowerPoint etc.) e saiu pelas cidades atrás de histórias e de impressões da população.
Refinado, independente e intelectualmente inquieto, não era de obedecer a ordens ou de afinar por ingênua simpatia.
Não era surdo, e assim chocou-se com o que levantou dos crimes de Stálin —desaparecimento de inimigos políticos, assassinatos, perfídia, o desastre da industrialização soviética, o Holodomor (o horror, o horror) ucraniano com 5 milhões de mortos.
Ao voltar a Paris, Gide enfurnou-se por dias em seu apartamento. Escreveria um livro sobre o que viu. Amigos pediram que não fosse tão sincero — em nome da causa, deveria omitir-se para não dar argumentos ao avanço da direita. Ou seja, minta.
O escritor deprime-se, mas não cede. Em 1936, chega às livrarias “De volta da URSS”. Claro, é um escândalo. Gide teve coragem de discordar da opinião geral, onde se encontravam intelectuais honestos e sinceros, ao lado de sicários pagos por Stálin.
Como reagiram os correligionários de Gide? Espalharam que um pederasta não deveria ser ouvido.
O que ele anunciou em 1936 só se tornaria oficial (os crimes de Stálin) em 1956, com o relato de Nikita Kruschev.
Tarde demais. O Touro de Bronze já assara milhões de companheiros, entre eles seus artistas e muitas obras.
Fonte:Opinião/Blogs/O Globo
Fonte:Opinião/Blogs/O Globo