O básico da história dos Beatles todo mundo conhece: o cínico John conhece o despreocupado Paul, depois vem George e, mais tarde, Ringo se junta a um grupo que estoura música atrás de música por um período muito breve.
Até que um dia a melhor máquina de fazer sucessos do mundo explode numa confusão de disputas pessoais e de negócios.
E ainda assim, como o escritor e ensaísta Adam Gopnik apontou num artigo da New Yorker de 2016, “permanece algo misterioso, e essa coisa misteriosa, como sempre na vida dos artistas, é o jeito como eles faziam o que fizeram”.
Com a publicação de The Lyrics: 1956 to the Present, uma enorme coleção de dois volumes de todas as letras que Paul McCartney compôs durante seus dias de Beatles e depois, finalmente sabemos de onde vieram as músicas (pelo menos as que ele fez sozinho ou em parceria).
Ou digamos que agora sabemos o máximo que saberemos: os comentários de McCartney sobre cada uma dessas 154 canções que ele compôs por conta própria ou com um parceiro como John Lennon – ou, mais tarde, Linda McCartney – são generosos, mas também informais, o que significa que são íntimos, mas incompletos.
Paul McCartney durante cerimônia do Rock and Roll Hall of Fame, em Cleveland, no dia 30 de outubro/Foto: Gaelen Morse/Reuters
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Paul McCartney durante cerimônia do Rock and Roll Hall of Fame, em Cleveland, no dia 30 de outubro/Foto: Gaelen Morse/Reuters
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Ler The Lyrics é como estar na cozinha de um chef enquanto ele prepara um prato, adicionando um pouco disto e uma colher daquilo e falando conosco de um jeito tão cativante que é só tarde demais que percebemos que ele ocultou um ingrediente – ingrediente que, por estar tão profundamente enraizado em si mesmo, ele nem sabia que estava ocultando.
Mas vamos ao que ele nos diz.
Primeiro, ele deve tudo aos artistas negros.
“Para deixar tudo bem claro”, diz McCartney, “em tudo que já fiz – nos Beatles, Wings, solo – tem uma corrente de música negra. Você pode dizer que é o blues, mas também pode ser soul”.
Até mesmo os intérpretes brancos nos quais os Beatles se basearam no começo da carreira, um grupo que abrange Elvis, Buddy Holly e Jerry Lee Lewis, foram todos influenciados por músicos negros como Chuck Berry e Little Richard, então “esta é definitivamente a base de quase tudo que fiz”.
Em seguida, o negócio é trabalhar com – e roubar de – gente boa.
Apesar de seus amargos confrontos no final da carreira, Paul deixa claro o quanto foi divertido compor com John.
Mas ele também aponta a importância das influências do produtor com formação clássica George Martin, de seu pai trompetista de jazz, Jim, e de seu professor de literatura do ensino médio, Alan Durband.
No que diz respeito aos roubos musicais, McCartney confessa que os Beatles roubaram as harmonias vocais dos Beach Boys, mas que “eles também estavam roubando de nós, claro. Todo mundo estava roubando de todo mundo. A coisa toda tinha muita circularidade”.
O conhecimento de Jim McCartney sobre os clássicos do teatro de revista britânico moldou todo o álbum Sgt. Pepper e muitas outras canções dos Beatles.
Mas, quando ele reclamou dos americanismos que se infiltravam no inglês de Sua Majestade e sugeriu que os rapazes usassem a palavra yes no refrão de She Loves You, os quatro músicos se mantiveram firmes, e o resultado foi seu single mais vendido no Reino Unido.
(Você consegue imaginar alguém cantando uma música que começa com “She loves you Yes, yes, yes”?).
Mas não importa quanto você seja inventivo, tente manter os pés no mundo real.
Use uma linguagem comum:
“She loves you”, por exemplo. “Gosto de usar frases comuns e colocá-las em algum tipo de contexto em que pareçam incomuns”, diz McCartney, acrescentando: “Acho que muitas pessoas criativas fazem isso”.
Afinal, a ideia era “fazer com que mais e mais pessoas gostassem de nós”.
É por isso que tantas das primeiras canções têm pronomes pessoais nos títulos:
Love Me Do, Please Please Me, I Want to Hold Your Hand e From Me to You (sobre a qual ele observa: “conseguimos botar dois pronomes nessa!”).
The Lyrics, editado e apresentado pelo poeta Paul Muldoon, não é o primeiro livro desse tipo e certamente não foi o primeiro a mergulhar na história e nas letras da banda.
Há também, por exemplo, All the Songs:
The Story Behind Every Beatles Release (2014), uma compilação robusta dos historiadores da música Jean-Michel Guesdon e Philippe Margotin, que comentam detalhadamente cada álbum e single em ordem cronológica, fazendo da obra a melhor escolha para os fãs que desejam acompanhar todo o desenvolvimento da banda.
A maioria das 213 canções de All the Songs foi escrita pela dupla de compositores Lennon e McCartney, embora algumas sejam atribuídas a George Harrison e Ringo Starr, enquanto outras são covers de sucessos de outros artistas, como Long Tall Sally, de Little Richard.
O que falta, claro, é a voz de McCartney, seu charme e seu ponto de vista isso-é-o-que-aconteceu-no-estúdio-naquele-dia.
Ambos os livros são ricamente ilustrados, embora The Lyrics consiga acumular muito mais coisa – como pôsteres, listas, notas manuscritas, fotos encenadas e casuais.
E embora All the Songs possa trazer mais fatos, não há nada como ouvir Macca (como McCartney era conhecido em seus tempos de Liverpool) falar sobre a ascensão de uma banda composta por adolescentes da classe trabalhadora que mudaram o mundo para sempre.
“Há uma certa alegria... na pobreza”, diz ele refletindo sobre seu eu mais jovem, “porque você não tem nada e, a partir daí, cria todos os tipos de cenários interessantes”.
Quase sessenta anos depois, ainda é uma história incrível.
Os comentários de McCartney sobre All My Loving começam com os quatro numa turnê de ônibus com Roy Orbison e outros músicos e termina com a aparição da banda no The Ed Sullivan Show, em 9 de fevereiro de 1964, um evento assistido por 73 milhões de pessoas, entre elas algumas que você não esperaria:
“Reza a lenda que o índice de criminalidade também caiu naquela noite: até mesmo os ladrões estavam assistindo”.
Os Beatles tinham conquistado a América, tomando todos os cinco primeiros lugares nas paradas da Billboard em questão de dias.
E a última frase desse capítulo diz:
“Alguns meses depois, fiz vinte e dois anos de idade”.
Outros deuses do rock, como Bruce Springsteen e Eric Clapton, escreveram memórias em idades muito mais jovens, mas McCartney estava sempre muito ocupado em turnês ou, bom, compondo canções – “a hora certa nunca chegava”, diz ele no prefácio.
Felizmente, outras cabeças prevaleceram e, por um período de cinco anos, Muldoon o entrevistou por horas e lhe arrancou esses comentários encantadores.
Quanto ao mistério de como ele fez tudo isso, talvez não seja uma coisa tão misteriosa assim.
A receita talvez seja trabalhar com (e não deixar de roubar das) as melhores pessoas e depois se dedicar bastante.
As canções não se compuseram sozinhas, mas, depois de um tempo, elas fluem tão suavemente da cozinha do chef Paul que quase parece que sim.
Com informações do Estadão / The Washington Post