06/02/2022 16:54

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Pelos motivos certos ou errados, ou exagerados, o revisionismo cultural está em movimento, e a música brasileira vai passar por um expurgo?

Por Nelson Motta

É provável que Nara Leão hoje não cantasse “Com açúcar, com afeto” (nem “Camisa amarela”, “Meu moreno fez bobagem” e “Camisa listrada”), imaginam alguns que a conheceram bem.

Mas talvez em um show ou programa de TV, Nara explicasse o contexto da época e cantasse essas lindas músicas de amor submisso. Como ficção de época.

Para ela, qualquer maneira de amor valia a pena. Talvez um sádico e uma masoquista, ou vice-versa, sejam o casal ideal. Calma, é só metáfora e ironia, pessoal...

A resposta do macho submisso é “Quero ser o teu escravo”, um clássico de Waldick Soriano, “pra viver acorrentado nos teus braços/ quero ser o teu escravo/ teu marido/ teu amado.” Pode?

Um dos problemas do cancelamento cultural é que, por causa de letras aparentemente sexistas, racistas ou discriminatórias, vão pelo mesmo ralo melodias e ritmos preciosos, que, por enquanto, ainda podem ser tocadas em versão instrumental. Mas mesmo assim talvez remetam a lembranças nocivas de versos condenados...


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Sempre ouvi encantado o ritmo e sonoridade das palavras do clássico “Nega do cabelo duro/ qual é o pente que te penteia/ qual é o pente que te penteia, nega?/ Teu cabelo está na moda / e teu corpo bamboleia/ minha nega meu amor/ qual é o pente que te penteia, nega? “

A melodia era de Rubens Soares, um sambista respeitado, não só por suas músicas, mas por ser pugilista profissional peso médio e policial por toda sua vida. A letra é do “turco” David Nasser, célebre jornalista, escritor e polemista dos anos 1940/50 e letrista de clássicos como “Canta Brasil”.

Mas, se esta música for cantada por um artista negro, como Jorge Benjor, que possa chamar seu amor de minha nega carinhosamente, e possa brincar com o seu cabelo solto e rebelde, tão bacana que está na moda, pode? Ou não deve? Só negros podem? Ou ninguém pode?

Joia carnavalesca do grande Fernando Lobo, “Nega maluca” é um show de ritmo e rimas sonoras: “Tava jogando sinuca/ uma nega maluca/ me apareceu / vinha com um filho no colo/ e dizia pro povo que o filho era meu/ toma que o filho é teu.” Seria alguma forma de racismo e machismo estrutural?

Quando Dorival Caymmi, nosso gênio mestiço afro-italiano, deu sua famosa receita musical em “Vatapá” e concluiu que “com qualquer dez mil réis e uma nega, ô/ se faz um vatapá/ um bom vatapá ”, estava sendo ofensivo? Machista? Racista? Caymmi merece ser cancelado? Valha-nos, Nosso Senhor do Bonfim!

Mestre Ataulfo Alves criou a “Mulata assanhada”. Um artista branco poderia cantá-la? Mas Elza Soares cantou e arrasou: “ Ai meu Deus que bom seria/ se voltasse a escravidão/ eu comprava essa mulata/ e prendia no meu coração”, mas no final “a pretoria [cartório] é que resolvia a questão”, casava de papel passado.

Pelos motivos certos ou errados, ou exagerados, o revisionismo cultural está em movimento, e a música brasileira vai passar por um expurgo? Será estabelecido um Index Musicorum Proibitorum?

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