Esse foi um dos temas do 22º Congresso da International Stress Management Association no Brasil (Isma-BR), realizado em Porto Alegre (RS), entre os dias 21 e 23 de junho.
Ele foi aborado pela doutora em Antropologia Social pela UFRGS e professora no curso de Medicina da Unipampa, Valéria Aydos, com mediação do advogado Marcos Weiss Bliacheris, que coordenou livros e produziu artigos sobre sustentabilidade e inclusão de pessoas com deficiência.
A palestra contou com a participação especial do professor de Literaturas em Língua Portuguesa pela UFPel Gustavo Henrique Rückert, que é autista e coordena o projeto de pesquisa “As palavras a girar: poesia autista em movimento”.
Na entrevista a seguir, Valéria, 49 anos, fala sobre como começou a pesquisar o assunto, sobre mitos que envolvem o autismo e sobre como podemos acolher melhor as pessoas autistas nos ambientes de trabalho.
Valéria Aydos, 49 anosValéria Aydos / Arquivo Pessoa
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Como você se interessou pelo tema da inserção de autistas no mercado de trabalho?
Entre mestrado e doutorado, fiquei 10 anos dando aula em vários cursos ligados a administração de empresas e recursos humanos (RH) na Unisinos, no Senac, na Faccat, entre outras instituições. No diálogo com os alunos, já vinha discutindo a gestão da diversidade nas empresas.
A minha proposta para o doutorado era trabalhar a diversidade em geral, mas comecei a perceber que o que as empresas entendiam por “gestão da diversidade”, aqui no Brasil, limitava-se a cumprir as cotas destinadas a pessoas com deficiência, previstas na Lei 8213/91. Então, resolvi focar nas experiências de trabalho dessa camada da população.
A antropologia, vale ressaltar, é uma área na qual damos mais voz ao campo. Não temos projetos fechados, a pesquisa vai se delineando em diálogo com o que o campo vai falando, a gente vai refletindo e construindo o foco, as questões e os objetivos ao longo da pesquisa.
Ao longo de minha etnografia, participei de um projeto de inclusão do sistema S (Senac, Senai e Sebrae), fiz um curso de aprendizado com uma turma de pessoas com deficiência, durante seis meses.
Eram 13 aprendizes, e me chamou a atenção um rapaz que ficava olhando no Google fotos de peixes e aves: “Esse é o paulistinha rosa...”. Achei fascinante, era como se ele, que na minha tese chamei de Tomás, fosse um PhD em Biologia. Recuperei a trajetória de inclusão dele desde criança, convivi com a família, fui a churrascos, entrevistei colegas e gestores dos setores em que trabalhou, estive ao lado dele duas vezes por semana no trabalho.
Cabe lembrar que Tomás é um “case de sucesso” que acaba por reafirmar a regra da exclusão. Vemos ainda poucas empresas que de fato implementam em seu cotidiano todas as ferramentas de “emprego apoiado”, como recursos de acessibilidade e demais adaptações razoáveis (de tempo, espaço, comunicação, interação social etc), inclusive previstas em lei.
Existem muitos estereótipos, embasados no capacitismo, que seria o julgar a pessoa, as suas habilidades, a sua personalidade e até a sua moralidade a partir da deficiência.
Em relação ao atusimo, um dos principais estereótipos é o do gênio sem etiqueta social, que não consegue conviver em sociedade, passa por mal educado, insensível, muitas vezes até malvado. Ou ocorre o oposto, a infantilização e a exotização dessas pessoas, que passam por ingênuas ou “puras por natureza”, com bom coração demais.
Você diz que “Nem todo autista é o gênio de The Good Doctor ou a pessoa que fica quieta fazendo movimentos repetitivos com as mãos, conhecido como flapping”. Quais são os mitos que existem em torno das pessoas com autismo?
Existem muitos estereótipos, embasados no capacitismo, que seria o julgar a pessoa, as suas habilidades, a sua personalidade e até a sua moralidade a partir da deficiência. No senso comum, julgamos pela falta, pela, com muita ênfase nas aspas, “anormalidade”, aquilo que a nossa sociedade coloca fora da curva do normal.
Tendemos a categorizar o mundo da deficiência a partir do que vemos na mídia, nos filmes, nas novelas. Um dos principais estereótipos é o do gênio sem etiqueta social, como na série The Good Doctor e no filme Rain Man, que são o que chamaríamos hoje de Autistas com grau de suporte 1, considerado até pouco tempo como “leve” ou nomeados como com Asperger, que não teriam deficiência intelectual e muitas vezes apresentam alta habilidade em alguma coisa.
Quase todos os autistas têm hiperfoco, o que na linguagem médica se chama interesses restritivos, a ponto de focarem tanto em um assunto que só querem falar sobre ele, dando a impressão para outras pessoas de que se desconectam do mundo, o que não é verdade.
Pessoas autistas interagem com o mundo de formas apenas diferentes. Muitos não vêm muito sentido em regras e etiquetas sociais, a linguagem é mais direta e concreta, e por vezes suas formas de interagir com o mundo são vistas como grosserias ou gafes cometidas.
Um mito é o do cara que é um gênio, mas não sabe se socializar, não consegue conviver em sociedade, passa por mal educado, insensível, muitas vezes até malvado. Ou ocorre o oposto, a infantilização e a exotização dessas pessoas, que passam por ingênuas ou “puras por natureza”, com bom coração demais.
Outro estereótipo é, digamos, da outra ponta, o do autista não oralizado. Acha-se que, por ele não usar a linguagem falada, ele não se comunica. Não, todo autista se comunica. A pedagoga Carol Souza (autista que passou a ser verbal aos 13 anos), por exemplo, utiliza a Comunicação Aumentativa e Alternativa como apoio, porque falar provoca sobrecarga. Então ela tem sempre à mão um tablet, onde escreve ou usa pictogramas.
Autistas com um grau de suporte mais elevado podem precisar de ajuda para várias atividades corriqueiras, como abotoar a camisa, amarrar os tênis, comer. No senso comum, fazer isso sozinho é o básico: “Como tu é formada em Pedagogia se não consegue falar?”. Somos uma sociedade de falantes. A fala bem articulada acaba sendo régua para a inteligência, mas existem inteligências múltiplas para muito além da nossa normose.
E quanto à imagem que fazemos dos autistas?
Os autistas recorrem ao que chamam de stims, movimentos regulatórios e repetitivos, normalmente. Fazem isso às vezes em situações de estresse, mas também é muito comum em momentos de alegria, medo, nervosismo... Toda e qualquer alteração sensorial ou emocional. Usam para regular a sobrecarga sensorial provocada, por exemplo, pela luz, pelo som, pelo barulho, pelo excesso de demandas sociais.
Essas regulações são vistas com preconceito, como se todos nós não tivéssemos as próprias válvulas de escape. Só que a gente aprende a obedecer a normatividade: tudo bem ter ansiedade, desde que tu não demonstre; tudo bem ter depressão, desde que tu não falte ao trabalho. As outras corporalidades, que fogem do esperado, não são bem vistas, tornam-se alvo de exclusão.
A gente consegue resistir às pressões e demandas sem entrar em crise mais facilmente do que as pessoas autistas. O fingir uma normalidade para neurotípicos te aceitarem em sociedade é uma violência para elas, demanda muita energia. O copo d’água enche muito rápido e transborda.
A palavra que eles usam para esse fingimento é “mascaramento”. Para autistas, não mascarar é um direito de saúde, de inclusão. Tenho direito de autistar, autistar é resistir, vocês vão, sim, conviver com as minhas mãos mexendo, comigo balançando na mesa do trabalho ou cantarolando a mesma música, porque enquanto faço isso eu consigo trabalhar, estudar, socializar sem entrar em crise.
Dia do Orgulho Autista, em 20 de junho, foi marcado por celebração de autistas que estão presentes nas redes sociais // Crédito: Canal Autismo
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Existem, de fato, profissões e/ou tarefas que sejam mais adequadas?
Não. Pode ser que uns quatro anos atrás eu dissesse que sim, mas não. Há autistas tanto nas áreas de TI (tecnologia da informação) quanto na de linguística ou na de biologia. Quando tu conhece um autista, tu conhece um autista. As habilidades não têm ligação direta com o autismo em si.
O hiperfoco ajuda os autistas, que acabam se destacando em áreas que demandam um conhecimento lógico matemático, como a matemática ou a música. Na nossa sociedade, consideramos isso tão difícil que então achamos que são gênios, e logo começamos a pensar nos gênios dessas áreas como autistas.
Um segundo ponto importante vem de outro mito, que já comentei, o de que autistas não gostam de socializar ou vivem dentro do seu próprio mundo. A gente olha para eles com a nossa forma de socializar, julgamos pelos nossos padrões, portanto, usamos a lógica da falta. É um mito que eles não podem estar em ambientes de trabalho onde convivam com outras pessoas.
Evidentemente, não posso deixar de fora uma das principais características dos autistas, mas não de todos: quando há muitas pessoas ao redor, pode haver uma “ressaca de gente”, que é provocada pela não acessibilidade, pelo constante mascaramento, mas não por não gostarem de pessoas. Uma coisa é ter três pessoas olhando para ti, outra é ter 30.
O meltdown, termo que eles usam, é o resultado de um ambiente não acessível ou de uma hiperdemanda. O autista desaba, chora, pode também se bater ou ou ficar agressivo com os outros, mas, novamente, é um erro associar esses desabafos com o autismo em si.
Julie Goldchmit, 25 anos, mostra que pessoas dentro do espectro podem, sim, construir uma carreira, mas que adaptações devem ser feitas.
Assistente de marketing desde 2019 na Unilever, multinacional de bens de consumo, Julie é autora do livro Imperfeitos: Um relato íntimo de como a inclusão e a diversidade podem transformar vidas e impactar o mercado de trabalho (Maquinaria Editorial), que aborda sua trajetória e seus desafios.
Crédito: Divulgação
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Por falar nisso, pode falar sobre a questão do contato físico com os autistas?
Cada pessoa tem a sua sensorialidade. As pessoas neurotípicas podem ter restrição a comidas, como o escargot, por causa da textura. Ou então não conseguem vestir uma roupa que ainda está com a etiqueta; isso incomoda, mas para autistas pode ser impossível.
Há autistas que adoram abraço, adoram beijo, não têm problema nenhum com o contato humano. Mas outros não gostam nem de chegar perto de alguém. Só que não é uma especificidade “do autismo”. Todos nós temos nossos limites corporais. Tem gente que se assusta, sente seu espaço invadido, talvez por traumas de infância ou timidez, ou até por questões culturais, mas em autistas isso pode ser uma barreira à participação em sociedade.
A deficiência escancara coisas que as empresas deveriam fazer para todos. Joga na nossa cara as microviolências diárias.
Se pudéssemos verbalizar para o gestor ou para o RH o que é mais confortável, o horário, o tipo de produção que podemos suportar ou não, quais os recursos de acessibilidade, quais as adaptações de ritmo e tempo que são possíveis, todos seríamos mais saudáveis.
O que as empresas deveriam fazer para acolher melhor as pessoas autistas? É possível estabelecer uma espécie de cartilha?
A primeira coisa é perguntar. Perguntar para as pessoas autistas o que pode ser feito. A deficiência escancara coisas que as empresas deveriam fazer para todos. Joga na nossa cara as microviolências diárias que, se não existissem, todos nos beneficiaríamos.
Se pudéssemos verbalizar para o gestor ou para o RH o que é mais confortável, o horário, o tipo de produção que podemos suportar ou não, quais os recursos de acessibilidade, quais as adaptações de ritmo e tempo que são possíveis, todos seríamos mais saudáveis.
Entendo a realidade das empresas em uma sociedade capitalista, entendo que elas precisem de metas e de lucro. Como o ideal não existe, o negócio é fazer um ajuste, um arranjo. Adotar o conceito de equidade, que é a igualdade com o respeito às diferenças, é um caminho.
Fonte: Zero Hora, por Ticiano Osório